quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Coluna: Anacrônico - Conto Lacrimosa


Lacrimosa

A dúvida... a dúvida era o pior.
Olhar em seus olhos e não saber da verdade. Ver o amor e não conhecer sua essência. E saber que nunca teria uma resposta.
Eu devia saber disso desde o começo, mas me julguei forte. Achei que meu coração havia endurecido o bastante para que ninguém passasse por ele de novo. Fui estúpida, eu sei, arrogante, e agora estou pagando por isso. Estou pagando por ter ignorado aquele primeiro pressentimento que tive quando nos conhecemos.
Eu via o fogo ao redor, mesmo com a visão embaçada, e sabia que não estava mais em casa. Aliás, não só em casa; sabia que não estava mais na Terra. Aquele lugar era desolador demais, vermelho demais. Tenho a impressão de que sorri com a percepção de estar no Inferno, mas não tenho certeza. A única coisa de que estou certa é de ter visto aqueles olhos pela primeira vez, e o esgar que parecia um sorriso. Não era humano, mas minha mente lhe deu características humanas porque era tudo o que eu conhecia. Ele estava em cima de mim, parecia que iria me engolir, mas algo o estava impedindo. Ele estava muito fraco, assim como todo aquele lugar. Eu me sentia fora de contexto, e a cada piscada as coisas saiam de foco. Os olhos continuaram sobre mim, mas o sorriso sumiu. Ele tentou, eu vi que estava tentando se aproximar, mas eu me afastava; alguém estava me puxando.
Conforme eu me distanciava dele, as chamas e o sentimento de desolação também se afastavam. Quando dei por mim, estava em uma cama de hospital, viva, completamente viva.
Mas não sozinha. Ele estava ali. Eu gritei, e as enfermeiras vieram, mas adivinhem só? Não podiam vê-lo. Achavam que eu havia tido sequelas neurológicas da tentativa de suicídio que um vizinho impedira de se completar. Depois de algum tempo, parei de insistir e fingi que aceitei que o homem parado constantemente na ponta da cama era só uma ilusão.
Ele era alto. Usava uma combinação tão escura de roupas que eu não conseguia sequer saber qual era o tecido, apesar de ter a sensação de que não o reconheceria se o tocasse. A pele era da mesma cor que a minha, branca e doente. Os cabelos eram lisos e tão negros quanto a roupa, cobrindo parte de seu rosto, mas não o bastante para me impedir de ver seus olhos. E estes eram como eu me lembrava; íris vermelhas, pupilas dilatadas.
Alguns dias se passaram enquanto eu ficava em observação, e aqueles olhos não se desviaram de mim por nem um segundo.
Acabei me acostumando. Me acalmando. Chegou o dia em que eu tive alta, e não posso dizer que fiquei surpresa ao perceber que ele me seguia. Assim que entrei no meu apartamento, vazio como sempre, ele estava lá. A cada cômodo que eu entrava, ele aparecia em algum canto aleatório, e eu chegava a ter de me desviar dele. Quer dizer, não sabia se ele era sólido, mas não estava disposta a arriscar.
O silêncio entre nós era perturbador, e eu realmente não queria ser a que iria quebrá-lo, mas era demais. Depois de uma semana o vendo o tempo todo, todos os dias, eu precisei falar alguma coisa. Estava sentada no sofá, fingindo assistir televisão e sentindo a presença dele atrás de mim.
- Vai me dizer quem é você?
Sufoquei um grito quando ele apareceu ao meu lado. Perto, muito perto. Eu me afastei, sentei no braço do sofá.
- Você pode falar?
Ele sorriu e assentiu. Assustador e gentil ao mesmo tempo.
- Posso. - ele disse, sua voz grave e estranha, chegando até mim como se não estivesse só nos meus ouvidos, mas também dentro da minha cabeça.
- Então, quem é você?
- Você me conhece.
Eu engoli em seco, mas havia começado aquilo, não havia? Tinha de continuar.
- Você estava lá, não estava? No... naquele lugar.
- Inferno, Hades, Sheol, Poço Sem Fundo. Humanos têm muitos nomes e definições. Sim, eu estava lá. - ele levantou um dedo para apontar para mim. - Você também estava. Por que não está mais?
- Talvez porque eu não tenha morrido?
O tom sarcástico foi automático; não pensei que ele poderia se ofender. Mas previ o perigo quando seus olhos se estreitaram.
Ele voou para cima de mim e me prendeu contra a parede mais próxima. Ele era sólido, sim, perfeitamente sólido, e estava me sufocando com o braço.
- E por que você não morreu?
Sua voz saíra mais rouca agora, como se a raiva a estivesse arranhando. Não consegui responder e pensei que tudo acabaria ali, mas ele se afastou; tão rapidamente que me fez cair.
- Você me trouxe para cá. - ele falou. Eu levantei o olhar e o vi observando o apartamento como se fosse pela primeira vez. - Eu nunca havia estado em seu mundo antes.
- Eu não... não foi de propósito... - tossi em meio às frases, mas ele não pareceu se importar, em silêncio por alguns minutos.
- Sua alma. - ele falou subitamente, voltando a olhar para mim. - Sua alma é minha. Deveria ser minha.
Eu fiquei quieta, tentando entender.
- O que... o que você é, exatamente?
- Vocês me chamam de demônio. Aquele Inferno, aquele é o meu lar. Eu me alimento das almas que vão para lá, e você... - ele se aproximou novamente, dessa vez devagar. - ... deveria ter sido minha.
Fechei os olhos e respirei fundo.
- Então para de enrolar e termine logo o serviço. Não é culpa minha se a medicina estragou seu jantar.
Ele não entendeu o humor, e ignorou tudo o que eu disse.
- Estou curioso. Nesse seu mundo, quantas almas você acha que vão para minha casa?
Eu sorri cinicamente, tendo aprendido a amar sem medo o mundo sanguinário em que havia nascido.
- Quase todas.
Ele também sorriu, novamente gentil e assustador.
- Então acho que poderíamos fazer uma troca. Você tem um nome?
- Cibele. Você tem?
- Não aqui. Me dê um nome.
Eu pensei por alguns segundos, ainda no chão, com medo de fazer algo que o irritasse de novo.
- Eu... não sei, um... s-Seth?
Ele pareceu gostar. Talvez por não saber que era o nome do meu antigo ursinho de pelúcia.
- Cibele. E se eu te deixar viver e, em troca, você me mostrar esse mundo e essas almas? O que acha desse acordo?
Que outra resposta eu poderia ter dado?
- Fechado.
E assim começou. Ele disse que deveria se alimentar sempre de almas que iriam para o Inferno, e não tinha ideia de como isso era bom para mim. Eu já sabia exatamente quem entregar, e na primeira vez que o vi fazendo aquilo, sugando a existência de um dos meus inimigos para dentro de si, eu adorei. Eu ri.
- É por isso que você também vai para lá. - ele me falou depois de ter terminado. - Você gosta de ver o sofrimento e a morte.
- Foi gente como ele que me fez assim. - respondi secamente. - Arrancaram minha inocência e tudo de bom que poderia restar em mim, torturaram meu corpo e minha mente. Por que eu seria melhor do que eles?
- Não seria. Na verdade, é pior. - ele chegou mais perto. - Você foi boa. Pura. Sua alma foi manchada, não nasceu suja. É por isso que você é pior e melhor do que todos eles.
Por um momento, achei que ele iria quebrar nosso acordo e me matar imediatamente. Seus olhos mostravam tanto desejo que me deixavam confusa. Muito confusa.
E só piorou depois. Eu encontrei as pessoas que haviam me amaldiçoado no passado, os homens que me violaram, as mulheres que destruíram minha família, as crianças que me humilharam; encontrei todos eles e os entreguei para Seth. A cada alma que ele engolia, eu me aproximava mais dele, e ele dizia que eu ficava mais irresistível. Mais digna do Inferno que ele chamava de lar. Achava que, se me tomasse como devia ter feito desde o começo, iria voltar para lá. Mas não queria, ainda não; aquilo estava muito divertido.
E conforme o tempo passava e eu seguia minha vida com meu demônio particular vivendo sob meu teto, por vezes entre meus lençóis, eu descobri que aquilo estava ficando forte demais.
Ele percebeu. Ele nunca deixou de poder ver minha alma desde que veio para esse mundo, e percebeu o amor brotando. Ele mesmo disse isso. Eu neguei, falei que não era nada, que iria passar. Mas ficava mais forte. E eu não conseguia saber o que ele achava disso.
Amor não purifica? Se minha alma estivesse purificada, ele não gostaria dela tanto quanto antes. Ele queria matar a pessoa cheia de ódio e amargura que eu era, não a mulher apaixonada! Mas, estranhamente, ele seguiu meus sentimentos. Beijou, tocou, fez com que a paixão crescesse mais e mais, até que não houvesse como impedi-la; e finalmente eu pude admitir que o amava. Por ter me dado uma vingança que eu nem sequer esperava, por ter me poupado quando poderia ter feito as coisas mais fáceis, por ter estado comigo quando ninguém mais estava; por não ser humano, talvez.
Mas aí é que está: ele não era humano. Nunca deixou e nunca deixará de ser um demônio. E a única coisa que ele quer de mim, a única coisa que eu posso dar, não é meu amor. É simplesmente a minha vida.
Eu demorei, aguentei, recusei-me a prosseguir com o pensamento... mas acabei cedendo.
Queria que ele me levasse. Que ele tivesse o que sempre deveria ter tido.
- Você vai me dar sua morte sem resistir? - ele perguntou, assim que eu tomei essa decisão.
- Vou.
- Isso é produto do amor?
- Sim.
Ele sorriu, o sorriso que eu conhecia tão bem. Aproximou-se, beijou meus lábios suavemente e se afastou.
- Ninguém nunca fez isso por mim antes.
Eu vi que ele falava a verdade. Via em seus olhos que ele estava amando aquilo, mas aí é que estava a dúvida: amando o quê? A mim, ou ao que eu estava fazendo? Ele queria minha alma para tê-la com ele, ou para servir de alimento?
- Os dois, meu amor. - ele se aproximou de novo. - Os dois.
Senti seu último beijo, sugando tudo o que havia dentro de mim.
E talvez não houvesse diferença entre amar e matar, afinal.


Conto inspirado na música LacrimosaKalafina




Beijos de Sangue,
A. F. Nascimento.
Colunista – Anacrônico.
 

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