quinta-feira, 13 de junho de 2013

Coluna Anacrônico: Conto Asas

 O pássaro observava. Não que pudesse fazer muito mais de onde estava. A gaiola o proibia de voar e interferir em qualquer coisa que acontecia ao seu redor, mas ele estava acostumado com isso. Ele gostava de observar.
Ele via o desenvolver – e ocasional retrocesso – das pessoas da casa. Era interessante o quanto ele podia captar só por estar na varanda. Lá ocorreram conversas, sorrisos e beijos, assim como discussões, brigas e lágrimas. Ninguém se dava conta de que estava sendo assistido, porque os olhos de um pássaro enclausurado não contam como olhos. Ele não pode falar nada a ninguém, e mesmo que pudesse, ele estava preso. Ninguém suspeitava de que ele pudesse formar suas próprias opiniões a respeito de qualquer coisa e, mais do que isso, ninguém se importava. Mesmo que o pássaro abrisse o bico naquele momento para dizer o que achava que era certo ou errado, ninguém lhe daria ouvidos. O que ele pode saber da vida, afinal, se sempre viveu em uma gaiola?
Mas havia alguém que lhe dava alguma atenção. Seu dono – seu verdadeiro dono – que lhe acariciava com os dedos, e lhe dava comida e água. O homem que sorria ao vê-lo, e ignorava qualquer calamidade ou felicidade na sua família só para poder passar um tempo com seu animalzinho. O pássaro gostava dele, gostava muito. Na verdade, ele já imaginara que, se tivesse a chance de sair, talvez não o fizesse, só para poder ficar com seu dono.
Mas as grades ainda eram ligeiramente frustrantes. Ele estava acostumado, sim, mas acostumar não é gostar, muito menos entender. Ele gostava de seu dono. Ele poderia ser livre e voltar para vê-lo de vez em quando. Por que ninguém o deixava sair, então? Por que tanto medo de ver o cativo simplesmente voar?
Isso era o mais longe que o pássaro chegava em suas indagações. Perguntas, o tempo todo eram só perguntas, e ele acabava desistindo de achar as respostas. Não acreditava que elas estivessem por perto, de qualquer jeito, e mesmo se tivessem, talvez não servissem para nada. Ali ele tinha comida, água e carinho. Ele só precisava reprimir a vontade crescente de bater as asas e viver uma boa vida ali mesmo.
Seu dono, porém, gostava de brincar com suas vontades, coisa que o pássaro nunca entendeu e achava até um pouco cruel. O dono sempre murmurava “um dia você será livre”, mas nunca abria a portinha. Nunca. As palavras deixaram de ter sentido e o pássaro parou de prestar atenção nelas, mas o dono continuava a repeti-las, quase como se fosse um mantra. Chegava a doer no pássaro não ver o resultado daquela frase.
Então ele passava seus dias a observar. Ele via as pessoas indo e vindo da casa, às vezes sorrindo, às vezes chorando, mas sempre voltando para o mesmo lugar. Ele não tinha certeza se entendia ou estranhava. Era bom ter um lugar para chamar de lar; mas algumas daquelas pessoas pareciam voltar só por obrigação. O pássaro via todas as vezes em que a menina mais velha saia escondida, parecendo feliz só por sair de lá. Mas por que ela voltava? O que a impedia de ficar lá fora?
O pássaro não entendia a menina como não entendia a mulher. Essa era ainda pior, pois nem fugir de vez em quando ela fugia. Ela voltava com sacolas toda semana, o rosto cansado e triste, e o mero conceito de liberdade parecia estar fora de seu alcance. O pássaro se perguntava se a menina algum dia ficaria como a mãe, ou conseguiria agarrar a liberdade de vez e não voltar para o cativeiro. Achava improvável.
O menino mais novo era diferente. Ele gostava de estar lá. Ele não via a casa como uma prisão; era parte do mundo para ele, uma parte na qual ele gostava de estar. O pássaro gostava do menino. Ele sentia que era o mais parecido com ele, com a diferença de que o pássaro era um pouquinho mais velho e já estava no ponto em que sabia que estava preso, mas ainda não ligava muito para isso. Ele estava entre o menino e a menina, e sinceramente não queria continuar indo para frente. Mas o tempo não parava e sua mente sempre divagava mais e mais.
Certo dia, ele achou que seu dono estava quase desesperado para libertá-lo. Era o homem da casa, o que sofria e se aliviava com tudo o que acontecia entre aquelas paredes, mas que estava tão preso quanto todos os outros. O pássaro, porém, o fazia feliz. Parecia que tinha algum significado, mas ninguém conseguia saber qual. E quando ele encostou o rosto na gaiola, cansado por mais um dia de trabalho, e sussurrou “voe, voe, voe” repetidamente, o pássaro se agitou. Como ele poderia voar, se o homem não abria sua gaiola? Era isso que não fazia sentido!
Eventualmente, o homem se recompôs e parou de falar com o animal. Mais dias se passaram, e o pássaro cada vez mais ficava interessado na possibilidade de sair. O mundo parecia tão grande. O céu parecia tão convidativo, e suas asas já chegavam a doer – fisicamente doer – por não estarem sendo usadas. Ele precisava sair. Ele estava chegando ao ponto da menina, e não queria passar por ele e terminar no da mãe. Ele queria sair.
Finalmente, em um dia ensolarado onde o seu dono estava sentado na varanda, parecendo pensativo, o pássaro notou algo novo. Na verdade, era algo velho, mas que ele nunca tinha visto. O ferrolho da gaiola... estava virado para ele.
O pássaro olhou para seu dono, que não o notou. Olhou para o ferrolho de novo e sentiu medo. Um medo esmagador, tão esmagador que poderia ou afundá-lo no piso da gaiola para sempre ou empurrá-lo para fora de uma vez. A escolha era dele, e isso era mais assustador do que tudo que ele já imaginara até então.
A dor nas asas ficou mais forte do que nunca, e o pássaro se decidiu.
Assim que ouviu o barulho do ferrolho se movendo, o dono levantou o olhar. O pássaro congelou, achando que ele iria vir correndo e trancá-lo de vez, mas o homem apenas sorriu e esperou. Com as esperanças renovadas, o pássaro terminou de empurrar o ferrolho e viu, estupefato, a gaiola aberta.
Ele não sabia o que fazer à princípio. Olhou para seu dono e o viu sorrir mais ainda. “Vá”, ele disse, “voe”. O pássaro pensou que talvez não fosse querer, pois gostava do homem e gostava de ficar lá. Mas o dono insistiu. “Voe, vá! Voe o máximo que puder, porque você pode. Voe o que nós não podemos voar, porque não temos asas”.
O pássaro finalmente entendeu o significado que ele sempre teve para o homem e bateu as asas com uma sensação incrivelmente gratificante. Alçou voo e foi tão natural quanto estranho; algo que ele nunca havia conhecido, mas que estava dentro dele o tempo todo.
Enquanto voava, ele se virou uma vez para se despedir do homem. Talvez fosse voltar, mas duvidada disso. O céu era grande demais para ele querer voltar, por mais que fosse sentir saudades. O que ele queria mesmo era que o homem pudesse ir com ele, e todos os outros também. Mas eles não tinham asas...
Não, não era isso. O pássaro os havia observado o bastante para saber mais. O homem estava errado. Eles tinham asas. Eles só não sabiam voar.


Beijos de Sangue,
A. F. Nascimento.
Colunista – Anacrônico.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

[Valid Atom 1.0]