sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Coluna: Anacrônico - Conto



Conto Anacrônico

Caem um, dois, três, caem quatro.
A Terra girando não se pode parar.
Um. Dois. Três. Quatro.
Ela gostava dessa música. Ignorava seu significado; somente o refrão colocava um sorriso em seu rosto e isso já lhe bastava. Fazia-a se sentir a própria cantora, a própria compositora, o próprio cerne da canção.
Caem um, e dois, e três, e ela sorria cada vez mais.
Suas mãos brincavam com o cartucho enquanto ela esperava a ligação. Faltava pouco agora. Toda quinta-feira, entre oito e nove da noite, ela ganhava uma missão nova.
Eram 20h32m agora. Trinta e três. Trinta e quatro.
Prim.
— Fala. — ela atendeu no primeiro toque, e a conhecida voz pulou as saudações e foi direto ao ponto:
— Homem, caucasiano, 29. Passarei foto, endereço e horário por fax.
— Ainda hoje?
— Sim.
— Vestígios?
— Sem testemunhas, mas pode largar o corpo em qualquer lugar.
— Recomendações?
— Sem técnicas de sedução. Ele não vai cair.
— Certo. — ela se preparava para desligar, mas a voz masculina do outro lado da linha a chamou novamente:
— K, espera. Boa sorte.
Ele desligou, e K congelou com o celular na mão.
Boa sorte? Boa sorte?
Merda, merda! Isso só podia significar uma coisa. Ele nunca a desejava boa sorte, exceto quando o homicídio era pessoal! Nas duas vezes em que ele disse isso, ela teve de matar uma amiga de infância e um ex-namorado. Apesar desse último ter tido um toque de divertimento, ainda assim não fora o mesmo que simplesmente atirar num estranho. Ela se lembrava bem demais da sensação de vertigem ao ver o sangue saindo do buraco bem entre seus olhos, aqueles mesmos olhos que a observaram entre lençóis, sem os lençóis, com vergonha e sem também. Era estranho.
Mas uma coisa era certa: não seria tão ruim. Ela já havia deixado claro que não mataria ninguém da própria família e nem uma lista especial de amigos que entregou pessoalmente ao seu chefe. Ele concordou, então não poderia ser nada tão grande agora.
Enquanto se arrumava, o fax chegou. Caminhou lenta, mas ansiosamente para ele e ficou ao mesmo tempo aliviada e apreensiva ao não reconhecer o rosto na foto. Deu de ombros e terminou de se preparar.
Ele estaria em um clube em mais ou menos três horas. Seu espaço de tempo seria pequeno, mas suficiente. Atraí-lo, atirar, fugir e deixá-lo para ser descoberto. Ok.
Ela se vestiu a caráter, deixando o revólver escondido na bota e duas facas presas em seu cinto, a blusa felpuda bloqueando a vista. A calça jeans lhe caía muito bem, e ela se analisou só por um momento no espelho antes de sair.
Ao chegar, entendeu o que seu chefe quis dizer a respeito das técnicas de sedução. Era uma boate gay. Ela apertou os lábios; é, talvez isso tornasse as coisas um pouco mais difíceis. Mas não impossíveis.
Aproximou-se do segurança, mostrando o pequeno papel plastificado que sempre levava consigo e cuja informação lhe permitia entrar sem ser revistada: o nome de seu chefe. O segurança aquiesceu e a deixou passar.
Fazia muito tempo que ela não entrava em um lugar daquele. Música alta, bebidas, pessoas próximas, pessoas distantes. Pessoas e mais pessoas. Ela sentiu um ímpeto gigantesco de pegar sua arma e atirar em todas aleatoriamente, mas é claro que se segurou, apesar do pensamento tê-la feito sorrir. Sim, ela gostava daquilo. Matar. Aquela era a profissão da sua vida.
Caminhou displicentemente, mas atenta, ignorando afavelmente os inúmeros olhares de expectativa que recebia de mulheres e alguns poucos homens. Depois de algum tempo, o achou.
Só viu seu rosto de relance, mas teve certeza de que era ele. Estava acompanhado, aparentemente por um grupo grande. K se encostou em uma parede, onde conseguia vê-lo parcialmente, e puxou a camisa do primeiro homem que passou.
— 200 para você ir até aquele cara ali e levá-lo pro banheiro.
O homem hesitou, mas decidiu internamente que não poderia haver perigo em algo tão simples. Ele exigiu o dinheiro primeiro, e assim que o recebeu, foi até o alvo e cochichou em seu ouvido.
Antes que ele voltasse, K já sabia que não tinha dado certo.
— Foi mal, moça, ele tem namorado.
Mas ele não devolveu o dinheiro. Ela não se importou.
Ela permaneceu ali, logo com uma bebida leve na mão, analisando o que podia ver de sua “presa”. Não conseguia enxergar mais ninguém que estava com ele, mas não havia problema. Bastava saber como ele agia. E ele parecia estar constantemente inclinado para um mesmo ponto, rindo e falando mais ao olhar para lá. Era onde estava o namorado, provavelmente.
Decidiu que estava na hora de se aproximar. Deixou a bebida de lado e convidou uma jovem para dançar. Foram para o centro da pista, K as guiando, para poder continuar com uma boa vista do alvo. Em alguns minutos, o grupo mudou de lugar, e ela percebeu sua perigosa aproximação do banheiro masculino.
— Hey, onde fica o banheiro? — ela perguntou para a garota com quem dançava, apertando seu corpo contra o dela sugestivamente.
— Ahn... ali... quer que eu te mostre?
— Por favor.
Elas se deram as mãos para não se perderem e entraram na multidão, indo na mesma velocidade que o alvo ia com seus amigos. Ao chegarem perto o bastante, K soltou sua mão da outra e falou em seu ouvido novamente:
— Espera aí, vou avisar minha amiga que eu estou aqui, se não ela fica louca. Já volto.
Ela percebeu que a garota sabia que ela viera sozinha, mas não precisava falar mais do que isso. Voltou-se para o banheiro mais ao lado e interceptou o alvo subitamente.
Ele olhou para ela ainda sorrindo de alguma piada que os amigos contaram. Ele estava mais atrás de todos, de modo que ninguém percebera que ele ficou para trás. Ela havia seguido seus movimentos até ali e sabia que isso aconteceria.
— Oi, me pediram pra te entregar uma coisa... — ela gritou sobre a música alta.
— Ah, eu tenho namorado, pode levar...
Mas ela já havia tirado do bolso o que ele achou ser um pedaço de papel, sendo na verdade um pedaço de pano branco. Nas luzes pipocantes da boate, ele não pode ver a diferença imediatamente, e nem teve tempo; ela levou o pano para a boca dele e o sufocou por dois ou três segundos. Ele piscou, tonto, e ela segurou sua mão, puxando-o.
Passou pela garota que a esperava na porta do banheiro e a lançou um olhar de desculpas, ao que ela fechou a cara e marchou para longe.
K foi para um lugar mais ao canto, um acesso aos fundos da boate, onde ela sabia haver ainda menos luz e muito mais privacidade.
Abriu a porta e guiou o homem, que resistia muito fracamente, grogue pela droga que ingerira à força. Foram para um pequeno quadrado acortinado, o som da pista de dança ficando abafado atrás deles, e K o deixou sentar.
Puxou a arma da bota, engatilhou, colocou o silenciador. Atirou, e o baque surdo da bala na testa do homem foi abafado pelo som dos gemidos vindos dos outros quadrados acortinados, masculinos e femininos.
K já havia se virado e estava curvada para guardar a arma quando ouviu a porta se abrindo.
— Daniel? Dani? Me falaram que você entrou aqui!
Aquela voz. Ela conhecia aquela voz.
A cortina se abriu, e o choque de um olhar no outro foi forte demais para que algum pensamento coerente se formasse.
Ela estava encarando seu irmão.
Ele abaixou a cabeça e viu o alvo — Daniel — caído no chão, o buraco na testa, a arma na mão da irmã. Sua boca estava semi-aberta, mas ele não conseguia falar nada.
Ela também não. Eles só recobraram os sentidos quando ouviram o primeiro grito, quando alguém finalmente viu o corpo.
— Você o matou... — o irmão falava. — Você o matou...
— E-eu não sabia... você nem me disse que estava namorando!
— Você o matou...
Mais gritos se seguiam, mas eles continuavam parados. Até que o irmão deu um impulso para frente e tentou agarrar a arma de K. Ela desviou por instinto.
— Pare com isso.
— VOCÊ O MATOU! — ele tentou pegar o revólver novamente, e agora o lugar estava se tornando um caos. — DE TODOS QUE VOCÊ TEM DE MATAR, POR QUE ELE? POR QUE ELE?
Ela continuou se desviando, até que suas costas atingiram a parede. Ela viu as pessoas ao redor, ouviu o tumulto lá fora; os seguranças chegariam logo. Ela precisava sair dali. Agora.
— Sai da minha frente, Alexandre.
— NÃO! Eu... vou... te... matar!
Ele fez um última tentativa e conseguiu, por fim, segurar a arma, mas K não a soltou.
— Eu sou sua irmã!
— Você o matou! — ele repetiu debilmente, chorando.
Ele puxou o gatilho, e o tiro por pouco não pegou no pé de um dos dois.
— Droga, Ale, para! — ela puxou a arma com força e a apontou para ele.
Ele não estava sendo racional. Nem um pouco. Porque ele se jogou para frente de novo, e ele iria acabar com ela, dava para ver em seus olhos que ele iria.
Seus dedos falaram mais rápido que seu coração, e K atirou.
O mundo congelou, e ela se sentiu incrivelmente calma. O corpo de seu irmão tombou sobre o do namorado, e a mente dela clareou, como se aquilo tivesse trazido uma paz sublime e instantânea. Para eles, provavelmente foi isso mesmo.
Ela guardou a arma e prontamente se misturou com os últimos que saíam daquela sala e iam de volta para o centro da boate. Continuou entre eles ao correr, até chegar à rua. E então andou, andou bastante, sem perceber bem o que fazia, até sentir que estava longe o bastante. Segura.
Seu cérebro cuidava bem dela no piloto automático. Mas agora isso já não era necessário. Ela se sentou em uma calçada e pegou o celular.
— Eu matei dois.
— Daniel Oliveira e Alexandre Costa. — seu chefe falou sem cerimônias.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos.
— Você sabia.
— O alvo nunca foi Daniel, K.
Ela fechou os olhos.
— Eu disse que minha família estava fora de cogitação.
— Coisa que eu aceitei, até que seu irmão roubou metade da clientela. Tem noção de quanto eu perdi pra ele, K?
— Podia ter mandado outra pessoa.
— Podia. Mas aproveitei pra te dar uma lição.
K deu uma risada amarga.
— Que ele mereceu morrer tanto quanto todos os outros que eu matei? Eu sei disso, seu merda. Eu não poupo minha família e amigos por achar que eles são melhores que ninguém. Eu os poupo por egoísmo.
— Então a lição é que você não é o centro do universo. A Terra girando não se pode parar.
Ele desligou. K continuou com os olhos fechados, tentando lutar contra as lembranças, todas elas; o corpo dele aos seus pés, as brincadeiras quando crianças, o sangue de minutos atrás, as broncas levadas juntas, o sangue, a adolescência, o sangue, o sangue, o sangue.
Da mesma cor que de todos os outros.
Ela foi para casa. Ligou para a mãe. Foi dormir.
E aguardou pela próxima quinta-feira, oito horas.



Beijos de Sangue,
A. F. Nascimento.
Colunista – Anacrônico.
 

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